4 de jan. de 2013

TEMPO LIVRE...

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Eu sei o que desuniu a família brasileira.
O momento em que ela abandonou o tradicional almoço em casa e procurou a rapidez do restaurante a quilo. 
Quando ela se desinteressou por completo da residência.
Quando trocou a diarista pela faxineira duas vezes por semana.
Quando começou a comprar comida congelada e economizar com os talheres.
Quando abdicou do pãozinho da padaria do final da tarde.
Quando as saídas ao supermercado tornaram-se frequentes.
Quando o intervalo do trabalho diminuiu consideravelmente.
Quando a vassoura sumiu de trás da porta.
Quando o avental desapareceu do seu gancho.
Quando ter uma horta passou a ser irrelevante.
Quando o pai não mais visitou sua oficina de marcenaria na garagem.
Quando a tabuleta de bem-vindo acabou dispensada.
Quando o capacho se divorciou da porta.
Quando a mãe adiou o jardim.
Quando a vista de fora superou o carinho da decoração.
Eu sei eu sei eu sei o instante exato da transformação.
Foi na hora em que a gente parou de vestir o botijão de gás.
Aquele ato mudou a mentalidade da classe média.
Cuidar do botijão significava zelar pelos detalhes, pela aparência e ordem doméstica.
Mostrava uma preocupação com o olhar das visitas. 
Um carinho com os coadjuvantes da rotina.
Um capricho com as gavetas e despensas e forros e fundos e cantos esquinas.
Não se podia deixar o gás daquele jeito sujo e engraxado no coração de azulejos da cozinha. 
Correspondia a um ultraje, a falta de educação, a ausência de asseio.
Ele precisava estar agasalhado. 
Todos os objetos do mundo mereciam uma capa: os cadernos de aula, o filtro de barro, o liquidificador, os ternos no armário, os carros na garagem. 
Os objetos tinham que durar: geladeira era para a vida inteira, o fogão era para a vida inteira, máquina de lavar era para a vida inteira. 
Não se pensava em trocar, não se guardava o certificado de garantia, absolutamente dispensável.
Minha mãe não largava os pedais da Singer nos finais da tarde, elaborava tampas coloridas para as compotas de doces ou revestimentos para os penduricalhos.
É óbvio que costurava, mensalmente, uma saia de renda para o gás, aproveitando sobras dos tecidos da cortina.
Eu achava que o botijão fosse uma irmã.
Meu irmão caçula já considerava um menino e chamava sua roupa de poncho.
– Mas é floreado! – eu dizia. – Não existe poncho floreado.
Vestir o botijão revelava o quanto nos importávamos com o desnecessário.
O quanto tínhamos tempo livre para amar.
Tempo livre para amar a família.
Tempo livre.”
 Autor FABRÍCIO CARPINEJAR