10 de out. de 2010

O ONTEM É IGUAL AO HOJE...(final)


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 O IDEAL DO CRÍTICO
MACHADO DE ASSIS
Diário do Rio de Janeiro, 8 out. 1865
Com tais princípios, eu compreendo que é difícil viver; mas a crítica não é uma profissão de rosas, e se o é, é-o somente no que respeita à satisfação íntima de dizer a verdade.
Das duas condições indicadas acima decorrem naturalmente outras, tão necessárias como elas, ao exercício da crítica. A coerência é uma dessas condições, e só pode praticá-la o crítico verdadeiramente consciencioso. Com efeito, se o crítico, na manifestação dos seus juízos, deixa-se impressionar por circunstâcias estranhas às questões literárias, há de cair freqüentemente na contradição, e os seus juízos de hoje serão a condenação das suas aspirações de ontem. Sem uma coerência perfeita, as suas sentenças perdem todo o vislumbre de autoridade, e abatendo-se à condição de ventoinha, movida ao sopro de todos os interesses e de todos os caprichos, o crítico fica sendo ùnicamente o oráculo de seus aduladores.
O crítico deve ser independente, - independente em tudo e de tudo, - independente da vaidade dos autores e da vaidade própria. Não deve curar de inviolabilidades literárias, nem de cegas adorações; mas também deve ser uma luta constante contra todas essas dependências pessoais, que desautoram os seus juízos, sem deixar de perverter a opinião. Para que a crítica seja mestra, é preciso que seja imparcial, - armada contra a insuficiência dos seus amigos, solícita pelo mérito dos seus adversários, - e neste ponto, a melhor lição que eu poderia apresentar aos olhos do crítico, seria aquela expressão de Cícero, quando César mandava levantar as estátuas de Pompeu: -" É levantando as estátuas do teu inimigo que tu consolidas as tuas proprias estátuas" .
A tolerância é ainda uma virtude do crítico. A intolerância é cega, e a cegueira é um elemento do erro; o conselho e a moderação podem corrigir e encaminhar as inteligências; mas a intolerância nada produz que tenha as condições de fecundo e duradouro.
É  preciso que o crítico seja tolerante, mesmo no terreno das diferenças de escola: se as preferências do crítico são pela escola romântica, cumpre não condenar, só por isso, as obras-primas que a tradição clássica nos legou, nem as obras meditadas que a musa moderna inspira, do mesmo modo devem os clássicos fazer justiça às boas obras dos românticos e dos realistas, tão inteira justiça, como estes devem fazer às boas obras daqueles. Pode haver um homem de bem no corpo de um maometano, pode haver uma verdade na obra de um realista. A minha admiração pelo Cid não me fez obscurecer as belezas de Ruy Blas. A crítica, que, para não ter o trabalho de meditar e aprofundar, se limitasse a uma proscrição em massa, seria a crítica da destruição e do aniquilamento.
Será necessário dizer que uma das condições da crítica deve ser a urbanidade? Uma crítica que, para a expressão das suas idéias, só encontra fórmulas asperas, pode perder as esperanças de influir e dirigir. Para muita gente será esse o meio de provar independência; mas os olhos experimentados farão muito pouco caso de uma independência que precisa sair da sala para mostrar que existe.
Moderação e urbanidade na expressão, eis o melhor meio de convencer, não há outro que seja tão eficaz. Se a delicadeza das maneiras é um dever de todo homem que vive entre homens, com mais razão é um dever do crítico, e o crítico deve ser delicado por excelência. Como a sua obrigação é dizer a verdade, e dizê-la ao que há de mais susceptível neste mundo, que é a vaidade dos poetas, cumpre-lhe, a ele sobretudo, não esquecer nunca esse dever. De outro modo, o crítico passará o limite da discussão literária, para cair no terreno das questões pessoais; mudará o campo das idéias, em campo de palavras, de doestos, de recriminações,— se acaso uma boa dose de sangue frio, da parte do adversário, não tornar impossível esse espetáculo indecente.
Tais são as condições, as virtudes e os deveres dos que se destinam a analise literária; se a tudo isto juntarmos uma última virtude, a virtude da perseverança, teremos completado o ideal do crítico.
Saber a matéria em que fala, procurar o espírito de um livro, escarná-lo, aprofundá-lo, até encontrar-lhe a alma, indagar constantemente as leis do belo, tudo isso com a mão na consciência e a convicção nos lábios, adotar uma regra definida, a fim de não cair na contradição, ser franco sem aspereza, independente sem injustiças tarefa nobre é essa que mais de um talento podia desempenhar, se se quisesse aplicar exclusivamente a ela. No meu entender é mesmo uma obrigação de todo aquele que se sentir com força de tentar a grande obra da análise consciênciosa, solícita e verdadeira.
Os resultados seriam imediatos e fecundos. As obras que passassem do cerebro do poeta para a consciência do crítico, em vez de serem tratadas conforme o seu bom ou mau humor, seriam sujeitas a uma análise severa, mas útil; o conselho substituiria a intolerância, a fórmula urbana entraria no lugar da expressão rústica,—a imparcialidade daria leis, no lugar do capricho, da indiferença e da superficialidade.
Isto pelo que respeita aos poetas. Quanto à crítica dominante, como não se poderia sustentar por si, - ou procuraria entrar na estrada dos deveres difíceis, mas nobres, — ou ficaria reduzida a conquistar de si própria, os aplausos que lhe negassem as inteligências esclarecidas.
Se esta reforma, que eu sonho, sem esperanças de uma realização próxima, viesse mudar a situação atual das coisas, que talentos novos! que novos escritos! que estímulos! que ambições! A arte tomaria novos aspectos aos olhos dos estreantes; as leis poéticas,—tão confundidas hoje, e tão caprichosas,—seriam as únicas pelas quais se aferisse o merecimento das produções, —e a literatura alimentada ainda hoje por algum talento corajoso e bem encaminhado,—veria nascer para ela um dia de florescimento e prosperidade. Tudo isso depende da crítica. Que ela apareca, convencida e resoluta, —e a sua obra será a melhor obra dos nossos dias.

VAI DIZER QUE NÃO É A MINHA CARA?
BEIJOS SURTADOS
REGINA