15 de nov. de 2014

O FUNDO DO POÇO, POR ROBERTO DA MATTA

 Uma nova “cidadania prática”, preocupada em exigir os seus direitos, questiona se, com o Plano Real, fomos capazes de acabar com a inflação, por que não podemos extinguir a corrupção como um valor, um ideal e uma daquelas malandragenzinhas a mais que não custa praticar? Não podemos mais aceitar o argumento terrorista segundo o qual há corrupção em todos os lugares, logo ela existe e seria normal no Brasil. Sabemos que a corrupção faz parte dos negócios humanos e da vida social. Como a doença e a covardia, a corrupção ajuda a definir e a balizar, como dizia o velho Durkheim, a saúde, a coragem e a honestidade. Mas sabemos também que, como a doença, ela só é normal se for combatida, evitada e dirimida. O que é intolerável neste nosso Brasil que começa a acionar uma cidadania moderna e igualitária é testemunhar a permanência da corrupção como valor e costume político, como uma perversão destinada a separar os sabidos dos babacas. Ser fraco relativamente a esse assunto é ser conivente com o privilégio engendrado pela ladroagem realizada dentro (e por meio) do Estado. Com isso, esse Estado, que seria o instrumento de transformação social positiva, passa a ser o centro de tudo o que é negativo na vida pública. Pois enquanto toda a sociedade se esforça para viver honestamente com aquilo que lhe cabe, os ocupantes de cargos estatais demonstram que se vive melhor pelo assalto às instituições públicas. Como ter a confiança necessária para transformar efetivamente o país, se o Estado é essa porcaria descontrolada que continua tendo razões que a sociedade e suas forças vivas desconhecem? Se o governo não consegue mudar a máquina estatal, como é que se pode continuar apelando para que o povo faça essas transformações? Se nem o governo do PT tem sido capaz de domesticar esse Estado perdulário, como é que fica o povo? Mais: se o governo, diante do escândalo filmado, gravado e televisionado, protege os seus aliados, o que pode fazer o povo, senão proceder como o MST e partir para o protesto aberto, para o quebra-quebra dos nichos onde estão os ladrões? Se ninguém, nem mesmo os eleitos com todas as “vontades políticas”, consegue domesticar esse Estado que é a fonte de leis ambíguas, de um Judiciário lento, de um sistema prisional desumano, de uma polícia inoperante e corrupta, como pode o cidadão confiar no ponto-chave de toda a democracia que diz: a vantagem do sistema é que ele pode ser rotineiramente corrigido e modificado? A leitura do que ocorre hoje no Brasil como crise política é insuficiente. O que há é uma insatisfação com uma relação perversa entre Estado e sociedade. Se a “cidadania eleitoral” ficava feliz com os argumentos baseados no terrorismo político-populista (“ele me acusa de corrupto porque quer vencer eleições”, “há um golpe contra nós”, “as ‘forças ocultas’ têm interesse em nos derrubar”, etc.); a “cidadania prática” começa a distinguir claramente que o voto é apenas um momento da cadeia democrática. O mais importante acontece depois da eleição. A insatisfação nada mais é do que a plena consciência da relação entre os impostos que pagamos — esses tributos que sustentam a máquina temporariamente gerenciada pelos que elegemos — com um desempenho administrativo mínimo que a sociedade espera e começa a cobrar do Estado. A novidade é que hoje o eleitorado entende bem as manobras do governo, desde que não seja tratado como um bando de imbecis. A reação que se esboça é no sentido de dar um basta a absurda e imoral ausência de limites entre normas legais permanentes e interesses pessoais e partidários imediatos e, às vezes, mesquinhos. Querer ganhar eleições é uma coisa, usar o Estado e o governo para tal é outra. Há, diz essa nova consciência cidadã, limites entre a pessoa do candidato e a figura do governador, do presidente e dos outros ocupantes de órgãos governamentais. Se o governo, que deve ser o juiz, entrar na disputa fazendo vista grossa do seu papel de árbitro da ordem, vamos para o fundo do poço. Um espectro ronda o Brasil. Não é o golpe ou o desgoverno. É o da cobrança de limites dos que foram eleitos ou são nomeados para serem os guardiões dos poderes que constituem a república. O eleitor-cidadão está disposto a confrontar-se com as assembléias, palácios e comarcas que congregam corruptos. Este é o fantasma que não admite mais uma terra de ninguém entre interesses ideológicos e eficiência administrativa, entre punição exemplar para os corruptos e companheirismo saudável que demanda solidariedade. O fantasma é o de uma cidadania que não desfaz os laços entre eleitor e eleito após a eleição, quando o vencedor vai morar num palácio. Somos nós, dizem os que quebraram a Assembléia em Rondônia, quem sustenta vocês “políticos” que usufruem nababescamente do fruto do nosso trabalho, nada fazem e nos assaltam! Se o Brasil não agüentar com essa cidadania prática que quer de volta os seus impostos na forma de administrações honestas e eficientes, então vamos direto para o fundo do poço da indiferenciação perversa entre pessoas e papéis, entre processos legítimos e manobras indesejáveis, entre democracia plena, baseada na igualdade, e um republicanismo clientelista, fundado em sinecuras, ideologias gastas e privilégios.

FELIZ DIA DA REPÚBLICA A TODOS!
BEIJOKAS SURTADAS,
REGINA