artista NAN LAURINO |
E o que ela pode nos lembrar, por
Eliane Brum
Em uma noite, a inglesa Naomi Jacobs foi dormir com 32 anos. Na manhã seguinte, acordou com 15. Naomi tinha perdido 17 anos de memória em um caso raríssimo de amnésia. Quando despertou, pronta para encontrar as amigas e paquerar os meninos na escola, descobriu que tudo havia mudado. Horrorizou-se com o fato de ainda morar em Manchester, ter se tornado psicóloga e ser a mãe solteira de um filho de 11 anos que não reconhecia. Não tinha familiaridade com celular nem internet, não sabia que o mundo mudara depois do 11 de setembro. Acordou pensando estar no século XX e deparou-se com o século XXI. Despertou pensando que era jovem e tinha todas as possibilidades diante dela. E descobriu que a juventude tinha passado. Em suas palavras: – Era como se eu tivesse dormido em 1992, como uma garota atrevida e autoconfiante de 15 anos, e acordado como uma mãe solteira de 32 anos. Quando acordei, olhei no espelho e levei o maior susto quando vi uma mulher com rugas me encarando. Não foi engraçado como Michael J. Fox em “De volta para o Futuro”. Eu havia adormecido num mundo de infinitas possibilidades e acordado num pesadelo. Naomi acordou com uma memória de 15 anos em um corpo e numa vida de 32 no ano de 2008. Mas só agora contou sua história à imprensa britânica. Ela já recuperou a maior parte das lembranças e está escrevendo um livro sobre sua extraordinária – e aterradora – experiência.
Sua história lembra uma tirinha antológica do cartunista Laerte, publicada na Folha de S. Paulo. Nela, uma adolescente entra na tenda de uma cigana para saber do seu futuro. No último quadrinho, a jovem tinha se transformado em uma velha. Este, afinal, é o futuro de todos nós – pelo menos dos mais sortudos entre nós, daqueles não tiverem a vida interrompida por bala perdida, acidente ou doença. E não é necessário nenhuma bola de cristal para saber. Apenas que, para viver, preferimos nos esquecer desta que é uma das poucas certezas com que se pode contar na vida.
Conversando com amigos sobre a extraordinária história de Naomi Jacobs, percebo que o pesadelo é recorrente. Em geral, acho que esse despertar, que ela antecipou com violenta literalidade, acontece por volta dos 40 anos. É quando compreendemos que a juventude se foi. E o que é a juventude? É o tempo das possibilidades. Quando a máquina do mundo está aberta em todo o seu esplendor. E o horror que se oculta nas engrenagens é minimizado pela nossa potência. Aos 15 ou aos 20 anos, tanto a morte quanto a velhice pertencem à vida do outro. Ser jovem é ser imortal. E é tão bom ser imortal. Não faço o tipo saudosista. Mas, se me perguntarem do que tenho saudades dos meus 20 anos, era disso: da ilusão da imortalidade.
Aos 30, começamos a perceber alguns sinais da passagem do tempo. Mas boa parte de nós está ocupada tendo filhos ou lutando para se estabelecer na tal da carreira ou em algum outro lugar simbólico. Acho que a imagem da família doriana, mesmo que ridicularizada aqui e ali, ainda é muito forte. Mas este é um tema para outra coluna.
É nos 40 que a consciência da mortalidade nos assalta. A morte nos chega pelo avesso, ao descobrirmos que já não somos jovens. Um rápido cálculo nos mostra que estamos na meia-idade, isto se acreditarmos que vamos superar a média da expectativa de vida da população do país. Mas não é um meio da vida qualquer, já que a melhor metade, pelo menos para a beleza e a saúde do corpo, já passou. As primeiras dores começam a aparecer, assim como os problemas com colesterol e outras más notícias que os exames de laboratório nos dão. Nosso rosto começa a ser transformado pelas rugas, nossos cabelos já têm mechas brancas e o corpo ganhou quilos que não pedimos. Se exageramos na bebida numa festa, o dia seguinte e talvez até mesmo a semana seguinte estarão perdidos para a ressaca. Mas isso não é nada perto da consciência de que não há mais tempo para ser a primeira-bailarina de algum corpo de baile nem se tornar algum cérebro das ciências modelo exportação.
A juventude se foi aos 40. E parte de nós fica perplexo com essa descoberta anunciada desde sempre, mas que, por sermos jovens, era fácil negar. Testemunho nem uma nem duas, mas várias pessoas perguntando-se, perplexas, sobre o que fizeram entre os 20 e os 40. Ou como não perceberam o tempo passar. Como Naomi Jacobs, parecem ter se esquecido da parte da vida que as deixou ali. E essa “amnésia” – quem é este que ocupa meu corpo ou de quem é este corpo que se diz meu – torna-se, como disse a inglesa, “um pesadelo”. Vejam o que Naomi Jacobs diz:
– Aos 15 anos, eu pensei que teria conquistado metade do planeta quando chegasse aos 30. Foi um choque enorme descobrir que eu era apenas uma mãe comum, dirigindo um velho Fiat Brava.
No caso dela, com sua estranha amnésia literal, é bem fácil compreender o terror de acordar pensando que tem 15 anos e se descobrir com 32 e uma vida construída da qual é preciso dar conta. No caso de muitos de nós, quarentões, o pesadelo é mais sutil e vai se desvelando aos poucos. Mas, seja para Naomi ou para nós, só há um jeito de seguir vivendo: lembrar.
Não deixo ninguém me impingir a balela do “espírito jovem”. Simplesmente porque não quero ter espírito jovem nenhum. Penso que a grande conquista da idade é exatamente o “espírito velho”. E a grande perda é a do “corpo jovem”. Não só pela beleza da juventude, mas porque quanto mais o corpo envelhece, mais perto ele está da morte, e eu adoro viver. Mas espírito jovem, tenha dó. Deu um trabalho danado aprender tudo o que sei até agora, para isso escorreguei um monte de vezes, magoei umas tantas pessoas, fui arrogante e insensível em alguns momentos, passei do medo que paralisa para aquele que move, me libertei de várias neuroses e de outras tantas idealizações e tive de ralar muito para me tornar um ser humano melhor. Assim, deixem meu espírito velho em paz, já que não podem me devolver o corpinho. (continua...)