artista NAN LAURINO |
E o que ela pode nos lembrar, por
Eliane Brum
Com isso quero dizer que o grande ganho de envelhecer é... envelhecer. É, portanto, a trajetória. Por isso, não há maior roubada do que esquecer o percurso, como fez Naomi, e como fazem muitos de nós, com a pergunta: “Como foi que eu cheguei até aqui? De repente, 40?”. É legítima a pergunta. E ela pode ser muito interessante se não nos paralisar, se for o começo de uma busca por resgatar a travessia. Porque, para seguir em frente, é preciso se apaziguar com o que ficou para trás, mesmo que a gente pense que poderia ter feito mais e melhor.
Para viver não há roteiro nem manual de instruções, estamos cansados de saber. Mesmo que nos bombardeiem de todos os lados e por todos os meios, 24 horas por dia, na tentativa de nos impor um jeito “certo” de estar no mundo, viver é viver. Ou seja, uma parte de escolha, outra de incontrolável. É com as nossas escolhas, mesmo que elas nos pareçam aquém das nossas expectativas, que precisamos ficar em paz. Vejo gente sofrendo porque caiu no conto da família doriana e agora se vê às voltas com a prestação ad eternum do apartamento, com a ex-mulher ou o ex-marido e com filhos que não parecem tão felizes assim. Do lado avesso, vejo gente se lamentando porque não comprou o apartamento com financiamento de 25 anos nem teve o casal de filhos nem deu aquele upgrade na tal da carreira porque ocupou seu tempo com outras aventuras.
Nossas escolhas sempre podem nos parecer insuficientes, porque nossa grande dificuldade é com o luto. E para cada escolha há uma perda. Se fui por aqui e não por ali, perdi tudo o que iria acontecer por ali, mas ganhei o que aconteceu por aqui. E vice-versa. Mas, numa sociedade que vende a falácia do gozo imperativo e absoluto, lidar com as perdas é um tormento. Aos 40, porém, é inadiável a compreensão de que não dá para ter tudo. Escolher é ganhar e perder, ao mesmo tempo. Ou, sendo mais precisa, talvez ganhar, com certeza perder. Dá medo, mas é assim que a gente anda.
Já fiz o exercício Peggy Sue – lembram do filme do Coppola, em que Kathleen Turner volta aos anos de escola depois de um estranho desmaio, com tudo o que sabe na meia-idade? Pois é. Descobri que, fora não cometer um ou outro namoro, no essencial teria de repetir todos os meus supostos erros, porque foram eles que me trouxeram até aqui. Até aqui para tentar outras vidas e me reinventar sempre que sentir necessidade, mas com a compreensão de que a mulher que virá conterá todas as outras que vieram antes. Hoje sou capaz de perceber que, entre os 15 e os 20 anos, fiz coisas incríveis. Menos por ser corajosa, mais por ser irresponsável. Aos 45, eu sigo tentando fazer coisas incríveis – incríveis para mim, claro, não necessariamente para os outros. Umas dão mais certo que outras. E agora não sou irresponsável, o que sou é corajosa.
Portanto, se você está tentado a sofrer de amnésia para não ter de acolher seu percurso, melhor não. Vale mais a pena se lembrar de cada detalhe, assumir suas escolhas pregressas e decidir o que vai fazer daqui para frente, com tudo o que é agora. A maravilha de ter 40, 40 e poucos ou muitos – e possivelmente vou estar dizendo isso aos 60 – é que sempre dá para a gente se reinventar. Dá até para virar bailarina, só por prazer, não por carreira. Ou estudar algo que sempre quis, sem maiores pretensões do que a delícia de aprender. Ou dar uma virada mais radical na vida, usando tudo o que descobriu chegando até aqui.
Foi mais ou menos isso o que a inglesa Naomi Jacobs fez, depois de ter a amnésia mais estranha da história. Recuperou as lembranças e decidiu realizar com elas um sonho de infância: escrever um livro sobre sua experiência. Nas palavras dela:
– Embora tenha sido traumático, eu estou realmente grata. Pude reavaliar minha vida e retomar o sonho de infância de me tornar escritora.
Atenção, porque é aí que está o ponto. Ela só poderá realizar o sonho da infância porque tem uma experiência para contar em livro. Precisou viver, com todas as perdas inerentes à vida – e no caso dela um enorme choque traumático –, para ter o que contar e realizar o sonho da infância.
Porque é isso que acontece por volta dos 40 e, no caso dela, aos 32: não é que perdemos a imortalidade, o que perdemos é apenas a ilusão da imortalidade. O que sempre tivemos, em qualquer idade, é uma vida: limitada, imperfeita, mortal. Mas extraordinária desde que olhemos para ela e para nós mesmos com generosidade e com a coragem de buscarmos o que é singular em nós. Ainda que contra o mundo inteiro. E, acredite, é mais fácil ter coragem com “espírito velho”.